Crônica de uma catarinense, mas se incluirmos o nome de qualquer outro município brasileiro o texto mantém o efeito. Publicado no Brasil de Fato.
Sou ônibus-dependente
Elaine Tavares
Tá bom. Eu confesso. Uso drogas. Mas não é porque eu
queira. Sou obrigada. E quem me obriga é a municipalidade. Sem dó ou
piedade, a prefeitura de Florianópolis, impõe a mim e a mais umas 200
mil pessoas, todos os dias, o transporte coletivo desintegrado. E fique
esperto. Destrói a gente mais do que o crack. Haveria de a RBS (TV
local) fazer uma campanha contra essa porcaria.
Nessas
três últimas semanas, em que não para de chover, a coisa fica ainda
pior. O terminal urbano é o saguão do inferno. As pessoas chegam
molhadas e emburradas. Porque sabem que haverão de passar ali algumas
horas de horror. Eu pego o ônibus para o sul e sei que em menos de duas
horas não percorrerei os 25 quilômetros que me separam de casa. Quem
vai para o norte terá a mesma sorte. Nas filas quilométricas, que
serpenteiam por dentro do terminal, as caras das gentes são de completo
desconsolo. Em algumas pessoas se vê um quase descontrole emocional.
Não há espaço para o sorriso ou para a delicadeza. O ódio é a nossa
herança.
Dentro do ônibus segue o desastre.
Vidros fechados, pessoas tossindo, a raiva aumentando. Como os coletivos
são poucos as pessoas se amontoam e a maioria vai em pé. O trajeto é
curto, mas a espera é longa. Quando chega ao famoso “elevado”,
construído com a promessa de “acabar com as filas”, o ônibus para. E ali
fica, se arrastando, por quase 30 minutos. Depois, ao entrar na rodovia
que vai para o sul, a lentidão é de matar. O povo já está bufando, o
estresse elevado à última potência.
Quem está nas
paradas do caminho vive outro tipo de desespero. Além da espera por
mais de hora, em pé, sequer há abrigo. E quando tem, é tão mal feito que
nos dias de chuva molha mais dentro do que fora. Como o “busão” demora a
passar, a parada vai enchendo e, sem organização, quando ele assoma, o
povo só falta se estapear para entrar primeiro.
“Acho
que a prefeitura deveria distribuir pipoca nas paradas”, brinca um
usuário desavisado, ainda não-dependente da terrível droga. É o que o
capitalismo faz, alivia a tensão. Como nas casas bancárias. A solução
encontrada para as filas gigantes foi colocar banco. Ideia genial. O
cara espera sentado. Aí reclama menos. Fica a ideia para o prefeito
Dário: distribuir pipoca.
Essa é a sina dos
trabalhadores. Sair de casa de madrugada, enfrentar as filas, o
desconforto, trabalhar feito um escravo e voltar para casa amargando
toda essa frustração. Quem sai do serviço às sete da noite só chega lá
pelas nove, “morto”. Como ser alegre com os filhos, como fazer um
chamego no seu amor, como estar bonita e cheirosa, como? Não há tempo
sequer para sonhar. E assim segue a vida na cidade grande. O bonde dos
drogados, dos ônibus-dependentes. Até que um dia alguém exploda, feito
pipoca. Aí os âncoras dos telejornais vão falar da “terrível e
incompreensível baderna”, como a que aconteceu em Londres.
Até
parece que as revoltas populares brotam do chão! Não foi à toa que a
revolta da Catraca aconteceu aqui, nesta ilha de magia. E não é sem
razão que as revoltas espreitam em todos os lugares onde a vida nos é
tomada.
S.
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