domingo, 14 de março de 2010

Janela


As articulações doíam. O sono ainda era forte, ainda que o relógio tivesse avançado bastante. Ele olhou de lado e viu que ela ainda dormia. Ou fazia de conta que dormia. Acho que minha conversa a derrubou antes da vodca, pensou ele. Com esforço, retirou a cabeça do travesseiro e foi até a janela. Olhou ao redor, a respiração ainda ofegante. Veio a sensação de sempre, quando observava os outros: As pessoas parecem mais dispostas que eu. E eu acabei de acordar... que merda!, pensou. A vida resolveu martelar minha testa com mais força. Os dias estranhos me reencontraram, e só os deuses e os cães sabem disso, falou pra si em silêncio.

De fato, ele estava diferente. Estranho. Cansado. Irritadiço. Tudo o desarranjava. Gente futriqueira. O calor absurdo. Motoristas ruins. Os esnobes e os medíocres, nada mais que dois lados de uma mesma moeda. Pessoas infelizes. E tristes, por não conseguirem escapar da própria desventura. Droga! Acabei de levantar e já estou desse jeito... com certeza eu a derrubei antes da vodca, pensou ele, girando a cabeça pra ver se ela ainda sonhava.

Como é que tanta gente se conforma? Como é que um grupo tão reduzido de donos do mundo pode inverter as prioridades de uma multidão? Como é que eles fazem isso? Como conseguem fazer do patético e do vazio elementos indispensáveis para a vida de milhões? A vida não é curta, como os publicitários dizem. A vida é longa, mas frágil. Trocaram o adjetivo, para que os comerciais do uísque e das picapes não ficassem tão desabonadores. À profusão de pensamentos, seguiu-se uma risada veloz e uma tosse nem tão curta. Foi nessa hora que ele percebeu que ela estava de olhos abertos.

Você está bem?, ela perguntou. Fecha a janela. Não vai dormir mais?, prosseguiu. Tô bem, só vim olhar a rua um pouco, ele retrucou. Você está com uma cara estranha, ela afirmou. Tô nada, você que está vendo coisas. Você sempre vê coisas demais. Quer ouvir uma música? Eu tava com Roadhouse Blues coçando na cabeça. Deixa pra lá, volta a dormir antes que eu te obrigue a tomar o resto da vodca, disparou ele, respondendo suas próprias perguntas. Ela mostrou aquele sorriso que servia de alimento para os que não tinham rumo. Ele fechou a janela, mas sabia que àquela altura já havia algo grudado em seu cérebro.

Definitivamente, os dias estranhos tinham voltado.
S.

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